O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
Pois bem, diante dos vários abusos dos órgãos de persecução penal que, por vezes, adentram na casa de cidadãos, procedem à buscas ilegais e nada de ilícito encontram, restando violado o direito à intimidade e a privacidade, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu alguns critérios para legitimar a entrada da polícia em residências, deixando claro que é necessário mandado judicial ou a autorização do morador.
Assim, por ocasião do julgamento do HC 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 15/3/2021), a Sexta Turma do STJ, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais, restando consignadas as seguintes conclusões:
Sobre a gravação audiovisual, é pertinente também destacar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF 635 (“ADPF das Favelas”, finalizado em 3/2/2022), oportunidade na qual o STF reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial no Estado do Rio de Janeiro.
Ora, mesmo diante de todas estas recomendações e consequências, inúmeros abusos estatais ainda foram constatados, o que fez com que o STJ, no julgamento do HC 696.084/SP, decidisse que, “nos crimes permanentes, tal como o tráfico de drogas, o estado de flagrância se protrai no tempo, o que, todavia, não é suficiente, por si só, para justificar busca domiciliar desprovida de mandado judicial”, sendo nula a diligência policial e ilícita a prova colhida:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ENTRADA EM DOMICÍLIO DESPROVIDA DE MANDADO JUDICIAL. DENÚNCIA ANÔNIMA. AUSÊNCIA DE OUTROS ELEMENTOS INDICATIVOS DE CRIME NO INTERIOR DA RESIDÊNCIA. ILEGALIDADE DAS PROVAS. BUSCA E APREENSÃO DOMICILIAR ANULADA. ANULAÇÃO DA SENTENÇA. 1. É pacífico nesta Corte o entendimento de que, nos crimes permanentes, tal como o tráfico de drogas, o estado de flagrância se protrai no tempo, o que, todavia, não é suficiente, por si só, para justificar busca domiciliar desprovida de mandado judicial, exigindo-se a demonstração de indícios mínimos de que, naquele momento, dentro da residência, está-se ante uma situação de flagrante delito. 2. Consoante o julgamento do RE 603.616/RO, não é necessária certeza quanto à ocorrência da prática delitiva para se admitir a entrada em domicílio, bastando que, em compasso com as provas produzidas, seja demonstrada a justa causa na adoção da medida, ante a existência de elementos concretos que apontem para o flagrante delito. 3. Hipótese em que os policiais, diante de denúncia anônima recebida, dirigiram-se à residência paciente e avistaram seu rosto numa janela, ocasião em que este correu para os fundos da casa, não obtendo êxito, naquele instante, os policiais em adentrar naquela para detê-lo, porquanto o muro da frente era alto, só o fazendo momentos após, encontrando no seu interior “meio tijolo de cocaína, seis porções grandes de crack e 27 porções pequenas de crack, além de uma balança de precisão e três facas com resquícios da droga. No banheiro próximo à cozinha, havia um fundo falso atrás da porta, no chão, onde foi encontrado mais um tijolo de cocaína”, sem mais outras demonstrações e indícios mínimos de que, naquele momento, dentro da casa, estar-se-ia diante de uma situação de flagrante delito. 4. Nesse contexto, configura-se a nulidade da prisão em flagrante em virtude das provas obtidas ilegalmente, por meio da entrada dos policiais em domicílio alheio desprovida de mandado judicial, sendo necessária, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, “a prévia realização de diligências policiais para verificar a veracidade das informações recebidas (ex: ‘campana que ateste movimentação atípica na residência’)” (AgRg no HC 665.373/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2021, DJe 10/08/2021). 5. Concessão do habeas corpus. Declaração de nulidade das provas obtidas por meio de medida de busca e apreensão ilegal (art. 157 – CPP). Anulação da condenação imposta ao paciente nos autos da Ação Penal nº 1500365-87.2018.8.26.0603, com a consequente expedição de alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso. (STJ; HC 696.084/SP, Rel. Ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), SEXTA TURMA, julgado em 07/12/2021, DJe 13/12/2021) .
É como disse o Ministro Gilmar Mendes no julgamento do famoso HC 164.493: “O resumo da ópera é: não se combate crime cometendo crime. Ninguém pode se achar o ó do borogodó.”
Muitos são os cidadãos aviltados e humilhadas em diligências ilegais que têm como pretexto o combate ao tráfico de drogas, sendo que, na maioria das vezes, tais pessoas nada têm a ver com a traficância, mas tornam-se vítimas do abuso.
Nestas toada, tem-se que, enquanto os agentes públicos não compreenderem que é necessário respeitar “as regras” no combate ao crime haverá impunidade, pois os processos continuarão sendo corretamente anulados. Em outras palavras: os fins não justificam os meios.
José Corsino Peixoto Neto
Advogado Criminalista - OAB/PB 12963